Blog temático, e temporário, para desenvolvimento do tema Religião & Apoio Social. Blog gerido pela área de Ciência das Religiões da Un. Lusófona, com a colaboração de Helia Bracons Carneiro (da área de Serviço Social da ULHT)

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Domingo, 5 de Setembro de 2010

Valores sociais e religião: a emergência de uma nova solução democrática

 

A Constituição francesa de 1791 excluía os trabalhadores e, em geral, as pessoas dependentes da titularidade do direito de voto, com fundamento em que a pobreza e a dependência impediam que se tivesse uma vontade livre, entendida como indispensável para a constituição da vontade coletiva. Passou então a ser um objetivo da democracia a eliminação da pobreza e, em geral, da dependência material, através da promoção pelo Estado da igualdade económica e social, quer através da instituição de uma “democracia industrial”, quer através de regulação pública, de políticas de bem-estar e de uma “democracia económica” (David Held, Political Theory Today, 1991: 160).

A democracia começou, paulatinamente, a ser entendida como uma democracia económica e social, substituindo-se o Estado à solidariedade dos privados, que poderia ter apenas, na melhor (ou pior, consoante a perspetiva) das hipóteses, uma natureza supletiva. Este processo levou muitas dezenas de anos a constituir-se e atingiu o seu apogeu na segunda metade do sec. XX, na Europa, com a criação do chamado Estado providência (welfare state). Este processo teve consagração constitucional, na maior parte dos Estados.

Os revolucionários franceses não eram amigos da religião, mas o mesmo já não acontecia com todos os que, na Europa, ajudaram a criar o chamado Estado providência. Aliás uma outra expressão para esta realidade é Estado social, cuja formulação deriva da doutrina social da Igreja Católica e que teve, e continua a ter, muitos católicos entre os seus paladinos.

O primeiro passo no processo histórico de construção da democracia moderna foi o reconhecimento dos direitos de cidadania política. A democracia económica e social foi o segundo passo no referido processo, e constituiu, também, uma subjetivação dos avanços dados inicialmente, através do reconhecimento dos direitos, agora reforçados, de cidadania a um número crescente de indivíduos. Com o segundo passo pretendeu-se melhorar os resultados dos processos políticos através do aumento das qualidades racionais dos membros da sociedade (Held, cit.). Foi o caso da aposta na educação universal e gratuita. E foi também a aposta num sistema público e universal de segurança social, bem como em políticas sociais ativas. O que começou por ser um meio de promoção das qualidades individuais transformou-se, com o tempo, num fim do Estado visando a qualificação dos indivíduos para uma cidadania responsável.

As confissões religiosas são, como sabemos, objeto de regulação constitucional e legal. As situações variam de país para país, mas basicamente incorporam, tanto nos países de matriz romanística como nos países de matriz anglo-saxónica, o direito de liberdade religiosa (incluindo a separação entre o Estado e as Igrejas) e o direito de as confissões religiosas definirem, nos termos da lei, os seus próprios fins.

Em Portugal, o papel de ação social das Igrejas, em particular da Igreja Católica, é reconhecido pelo poder político, e é, além do mais, visível por todos, através, sobretudo, do trabalho realizado pelas instituições privadas de solidariedade social e pelas misericórdias, que foram inventadas em Portugal e que, em alguns casos, foram replicadas em outros países, sobretudo nos países de língua portuguesa.

É de notar que, nos últimos anos, se registaram tensões em Portugal entre o Estado e a Igreja Católica, por causa da aprovação de leis várias em matéria de costumes, mas, ao mesmo tempo, verificou-se entendimento em matéria social (sem prejuízo de críticas pontuais por parte da Igreja), reconhecendo os governos o importante papel das instituições ligadas à Igreja Católica no combate à pobreza e no apoio em geral aos necessitados. O mesmo se diga de outras instituições ligadas a outras confissões religiosas, embora com menos peso.

Nos tempos atuais de crise, existe uma redução das despesas sociais por parte do Estado e, simultaneamente, um aumento da procura de apoio das instituições de solidariedade social não estatais, nomeadamente das instituições de inspiração religiosa. Estas são hoje imprescindíveis à coesão social do país, o que nos permite antecipar o futuro: a retração do Estado será compensada pelo aumento da intervenção das instituições da sociedade.

Mais do que discutir o Estado social, é necessário discutir o Estado e, particularmente, as funções de soberania, que são o que justifica o Estado (etimologicamente, Estado é “o que está”), embora não se esgotem na intervenção do Estado. As funções de soberania no início do séc. XXI são três, ainda à espera de correta definição e concretização: segurança, justiça e educação. Não vou desenvolver este tema, realçando apenas que os factos mostram a emergência de uma nova solução democrática. É já um facto irreversível que o Estado do séc. XXI terá funções diferentes do Estado da segunda metade do séc. XX. Está a construir-se um novo Estado, bem como uma nova relação deste com a sociedade.

Um dos traços mais marcantes desta evolução passa pela valorização do voluntariado, como expressão do reconhecimento dos outros e de uma dádiva de si mesmo aos outros. O Estado vai ter de reconhecer mais direitos a quem exerce voluntariado, porque o voluntariado não é ir para fora, com bons salários e vantagens fiscais, ou ficar cá dentro, a fazer caridadezinha, mas uma ação consciente e deliberada ao serviço de quem mais precisa. Faz voluntariado aquele que abandona o serviço a si próprio para servir o outro – institucionalizando pela prática o amor a todo o outro, incluindo si próprio. Esta realidade altera, pela sua exigência, a prática política, apesar de (ainda) estar fora dos cânones científicos.

O Estado que existe é velho mas tem a superioridade que decorre do distanciamento das coisas, que lhe proporciona uma possibilidade extraordinária de identificação com a verdade da sua existência, numa espécie de última definição. Já o espírito religioso gosta de jogar as últimas partidas e, por sabê-las últimas, joga-as bem. Esta é a “cartada” do voluntariado de inspiração religiosa no mundo atual, que é suficientemente forte para poder alterar o modelo de organização social existente.

As sociedades atuais são crescentemente desigualitárias e há uma nova pobreza ligada à falta de trabalho. Mas o Estado, ao invés de destruir a dependência das pessoas, criou dependência. Que fazer? É ir adiante.

Na Encíclica Caridade na Verdade, Bento XVI, recordando a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (a “Gaudium et Spes”), recorda que “o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social”. Ora se é protagonista, não pode ser dependente. O sistema político vai provavelmente mudar, de modo a que exista um novo mundo em que haja uma existência informada do que está a acontecer, não só na vida de cada um mas em relação aos demais. Será um novo mundo onde todas as pessoas serão educadas, no sentido de que se elevam a um novo patamar de afirmação diante dos outros. Este é o antídoto (religioso) do relativismo, que há todo o interesse em que seja adotado: o “herói das 1000 faces”, de Joseph Campbell (que miticamente personifica a humanidade), é, nas suas diferenças de fisionomia e perspetiva, a mesma pessoa, em direção à maturidade. É, volto a insistir, aquele que abandona o serviço a si próprio para servir o outro, institucionalizando pela prática o amor a todo o outro, incluindo si próprio.

 

 

João Relvão Caetano

Universidade Aberta

 

publicado por Re-ligare às 14:15
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